01 setembro 2013

Poema da Malta das Naus

Poema: António Gedeão (in "Teatro do Mundo", Coimbra, 1958; "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor", Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997)
Música: Manuel Freire
Intérprete: Manuel Freire* (in EP "Dulcineia", Zip-Zip, 1971; CD "Pedra Filosofal" (compilação), Strauss, 1993, CNM, 2004) 





Lancei ao mar um madeiro, 
espetei-lhe um pau e um lençol. 
Com palpite marinheiro 
medi a altura do Sol. 

Deu-me o vento de feição, 
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo, 
rebotalho de gibão. 

Dormi no dorso das vagas, 
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas, 
mordi peloiros e zagaias. 

Chamusquei o pêlo hirsuto, 
tive o corpo em chagas vivas, 
estalaram-me as gengivas, 
apodreci de escorbuto. 

Com a mão esquerda benzi-me, 
com a direita esganei. 
Mil vezes no chão, bati-me, 
outras mil me levantei. 

Meu riso de dentes podres 
ecoou nas sete partidas. 
Fundei cidades e vidas, 
rompi as arcas e os odres. 

Tremi no escuro da selva, 
alambique de suores. 
Estendi na areia e na relva 
mulheres de todas as cores. 

Moldei as chaves do mundo 
a que outros chamaram seu, 
mas quem mergulhou no fundo 
do sonho, esse, fui eu. 

O meu sabor é diferente. 
Provo-me e saibo-me a sal. 
Não se nasce impunemente 
nas praias de Portugal.


* Arranjo e direcção – Thilo Krasmann
Produção – Zip-Zip
Gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, Paço d'Arcos
Técnico de som – Hugo Ribeiro